E se pudéssemos apagar lembranças ruins ou recuperar informações
perdidas no nosso cérebro? Este é assunto antigo nas rodas de conversa
dos apaixonados por ficção científica e pauta para alguns filmes desta
linha. Mas a verdade é que a ciência já tem estudos conclusivos e provas
concretas de que isso é possível.
Por exemplo, o novo estudo desenvolvido pelo Laboratório Pesquisa em
Memórias do Instituto do Cérebro (ICe) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), coordenado pelos neurocientistas Martín
Cammarota e Lia Bevilaqua, demonstra que é possível bloquear
especificamente a incorporação de nova informação em memórias
pré-existentes, como também apagar seletivamente memórias recentemente
utilizadas em ratos. O trabalho foi publicado este mês no periódico científico Journal of Neuroscience.
Isso foi possível graças à inibição da proteína PKMzeta, uma proteína
quinase que atua no fortalecimento das sinapses cerebrais,
principalmente no hipocampo, e tem como função modular a eficácia da
comunicação entre neurônios. Os pesquisadores estudaram um tipo
particular de memória declarativa, chamada de memória de reconhecimento
de objetos (MRO), cujo funcionamento é essencial para nosso dia a dia,
já que nos permite reconhecer objetos conhecidos e distingui-los de
outros incomuns ou não familiares.
Dois pontos foram considerados neste novo estudo: como as memórias se
modificam e como é possível alterar a durabilidade dessas memórias após
elas perderem ou adicionarem novas informações. Os resultados demostram
que, ao impedir o funcionamento normal da PKMzeta no hipocampo, é
possível fazer com que um rato seja incapaz de incorporar informações de
um objeto novo em memórias pré-existentes, conduzindo assim ao
apagamento seletivo da memória de um objeto já conhecido que acaba de
ser reexperimentado.
“O rato não perde a memória de todos os objetos que conhecia, mas
unicamente aquela acerca do último objeto conhecido do qual se lembrou
antes da inibição da PKMzeta. O interessante é que isso acontece apenas
quando o objeto conhecido é lembrado na presença de um novo, totalmente
desconhecido para o animal”, explica o professor Martín Cammarota.
Suponhamos que um rato conhecesse um total de cinco objetos e, junto com
um deles, for apresentado um sexto objeto até então desconhecido. Ao
impedir o funcionamento da PKMzeta no hipocampo após essa apresentação, o
rato não será apenas incapaz de formar a memória deste novo item, mas
também se esquecerá do objeto conhecido que foi reapresentado junto. A
memória referente aos outros quatro objetos permanecerá inalterada.
Além disso, os pesquisadores demonstraram que a amnésia induzida pela
inibição da PKMzeta leva ao desaparecimento físico do traço mnemônico
que sustenta a representação do objeto conhecido. Ou seja, para
readquirir a memória relativa a esse objeto, o animal deverá
obrigatoriamente reaprendê-la. “Estes achados contribuem notavelmente
para o entendimento dos fatores que governam a persistência e a
modificação das memórias declarativas e abrem uma janela promissora para
o tratamento efetivo de doenças e transtornos que cursam com um notório
deterioro deste tipo de memórias, como é o caso da doença de
Alzheimer”, completou Martín Cammarota.
Caminhos para novas pesquisas
Da mesma forma que a amnésia, que é a perda de memória, preocupa a
medicina, pois dela advêm doenças como o Alzheimer, a hipermnésia,
capacidade fora do comum de evocar lembranças, também inquieta, uma vez
que gera ansiedade e dificuldade de adaptação dos pacientes. Ambos os
casos são motivos de estudos há anos, muitos deles aplicados. O trabalho
do Laboratório de Pesquisas em Memória do Instituto do Cérebro está no
campo da pesquisa básica, cujo objetivo é conhecer a neurofisiologia e a
neuroquímica dos processos que subjazem o processamento, modificação e
armazenamento de informação. “A fisiologia precede a patologia. Não se
pode restituir a funcionalidade normal de um órgão ou sistema danificado
se não a conhecermos”, destaca Martín.
É por isso que a nova descoberta abre uma janela promissora para o
tratamento efetivo de doenças como o Alzheimer, problema que atinge 47
milhões de pacientes em todo o mundo. Neste caso específico, segundo
Martín, um dos sintomas que aparece mais cedo é a perda das memórias
referentes ao reconhecimento de situações e itens corriqueiros.
“As pessoas começam a esquecer as coisas e situações que viveram e
passam a confundir ou misturar nomes, circunstâncias e objetos. Conhecer
as bases cognitivas, moleculares e eletrofisiológicas dos processos que
sustentam este tipo de memórias, permitindo sua modificação,
fortalecimento ou apagamento seletivo, é imprescindível para desenvolver
terapias visando o tratamento efetivo de numerosas doenças”, completa o
cientista. Ainda segundo Martín, da mesma forma que se pode fazer com
que um rato esqueça seletivamente um objeto, é possível fazer com que se
lembre dele melhor ou durante mais tempo. É essa perspectiva que abre
possibilidades de estudos futuros sobre demências como o Alzheimer.
O estudo da PKMzeta
Os primeiros estudos relevantes sobre esta proteína começaram a ser
divulgados em 1993 pela equipe do cientista Todd Sacktor, do Suny
Downstate Medical Center, em Nova York. Ele criou a molécula peptídeo
zeta-inibidor (ZIP), que age como um bloqueador da PKMzeta, com objetivo
de apagar memórias de longo prazo em ratos.
A proposta deu certo, mas em 2013, pesquisadores da Universidade
Johns Hopkins, nos EUA, criaram modelos de ratos sem esta proteína e
descobriram que, mesmo assim, eles continuaram formando memórias. O
estudo do Laboratório de Pesquisas em Memória corrobora que a inibição
da PKMzeta é amnésica, mas demonstra que, diferente do que disse
Sacktor, a proteína não participa dos processos de formação e
armazenamento de novas memórias, mas atua especificamente mediando a
incorporação de nova informação em memórias pré-existentes.
Fonte: Reportagens e Saberes é produzido pela Assessoria de Comunicação da Reitoria da UFRN – ASCOM/UFRN
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